Não havia sequer uma nuvem no céu. Era um lindo dia de verão, cores vivas, o verde era mais verde, o azul mais azul e o horizonte pintava um quadro com uma palheta de cores impossível de ser reproduzido pelas lentes das melhores câmeras ou até pela mais complexa mistura de cores dos mais talentosos artistas em seus mais sofisticados quadros. Um espetáculo da natureza que, de tão incrível, rende dia-após-dia centenas de aplausos ao fim de cada entardecer. Fui fazer o que todo o cidadão carioca precisa, ao menos uma vez na vida, fazer, assistir ao por do sol na pedra do Arpoador. E é nesse cenário que começa esta história.
Junto ao meu irmão de consideração, sujeito de cuja história ainda pretendo escrever, aventurei-me nessa jornada, pegamos um Uber e descemos na praia do Arpoador. O lugar estava infestado de pessoas, de todas as cores, gêneros e classes sociais. O policiamento era absurdo, havia, sem exageros, uma viatura a cada 10 metros, diversos policiais na areia da praia e outros tantos no calçadão. Em silêncio, enquanto meu irmão tirava centenas de fotos do ambiente para alimentar a superficialidade demandada por suas redes sociais, dei luz ao primeiro, apesar de recorrente, pensamento do dia “É impressionante como que, apesar de toda essa repressão e viaturas estrategicamente posicionadas para defender o tão sagrado direito à propriedade privada da “elite” brasileira, ainda ocorrem diários arrastões e pequenos furtos na zona sul carioca. Como ainda não é nítido para a população média que a repressão, apesar de necessária em um estado democrático de direito, está longe de ser a solução para um problema que bem mais efetivamente seria reduzido caso a prioridade do estado fosse o enfrentamento à abrupta desigualdade social?”.
“Para de ser retardado, Bruno, o dia está muito lindo e não é o momento nem o lugar para este tipo de reflexão” disse minha mente como que em uma segunda voz, na tentativa de proteger-se de si mesma, interrompendo o pensamento que até então dominava o foco do meu pensar. Chegando à pedra, deparamo-nos com um terreno de inclinações peculiares, onde o caminhar era mais difícil, mas estava longe de exigir habilidades suficientes para chamar a caminhada de escalada. Milhares de turistas tiravam fotos do ambiente enquanto nós buscávamos o melhor lugar para uma vista perfeita, até que escuto uma voz gritando “ladrão, ladrão” e, apesar de toda a beleza única do lugar, esse foi o exato momento que motivou a escrita deste texto.
Não sei se pela alta da adrenalina ou se foi reflexo dos anos praticando artes marciais, mas, como em um filme, o tempo desacelerou na minha cabeça, muitos pensamentos vinham à minha mente, com uma velocidade bem acima da que costumam vir, enquanto a imagem de um menino magro, negro e favelado passava em câmera lenta pelo meu olhar. O garoto estava a um metro de distância de mim. Simultaneamente as vozes na minha cabeça começaram a analisar: “Ele está sem camisa, de bermuda e chinelo, logo não está armado e também não parece ter nenhum companheiro em volta”, “com ele nessa velocidade, se eu colocar o pé na frente ele irá cair e eu estarei em uma condição muito favorável. Se bem que... nesse ângulo, ele está com o queixo muito exposto, minha mão tranquilamente pode envolve-lo jogando pra trás e eu tenho condições de imobilizá-lo no mata leão, sem machucar muito”, “Não, não posso dar um mata leão porque, se eu deixei passar algum companheiro, ficarei muito exposto, ideal seria dar um soco ou um chute no queixo exposto que ele irá cair desmaiado ou próximo disso... vou chutar...”, “Tá maluco, olha a quantidade de pessoas em volta. O policiamento no calçadão e na areia é intenso, mas até os policiais perceberem e subirem à pedra, a população já terá linchado o moleque na porrada e, sozinho, eu não conseguirei impedir”, “Você tem o poder de intervir nessa história, Bruno, e quem tem poder tem responsabilidade”, “Que merda!! Vou deixá-lo fugir, a vida dele vale mais que o celular dela e, com sorte, ele é detido por algum policial no caminho”. Pisco o olho, o tempo volta ao normal e o moleque atravessa uns cactos à minha direita, “deve ter se cortado todo”, pensei.
Talvez o leitor, se é que algum dia existirá alguém, não entenda o meu processo decisório, ache que eu errei, já que ele era o criminoso e ela a vítima, ou, se o leitor viver em tempos mais evoluídos, ache que a decisão foi óbvia, dado que uma vida sempre deve valer mais que um celular, a este, cabe pontuar que estamos no final de 2018 e a população acaba de eleger Bolsonaro para presidente (ou seja, o “anti PT” não elegeu Amoedo ou o Meirelles, que tinham propostas voltadas à “melhoria” da economia e nem elegeram o Ciro, como um governo populista alternativo ao Lula, mas elegeram o Bolsonaro, que representa a população em seu discurso conservador, repleto de “bandido bom é bandido morto” e defesa à ditadura militar), já àquele, espero que, ao final deste texto, compreenda-me melhor.
Após o ocorrido, sentei para ver o pôr do sol, a imagem do menino todo cortado pelos espinhos dos cactos vinha à minha mente junto a um trecho de uma música do grupo Síntese que diz:
“Entre ser ou não ser, querendo ser tem uma fila de neguinho
Iludido por grana, conceito, querendo respeito
E pensando que o único jeito é ser bandido!
Divido entre a fome e a honestidade
Sujeito homem antes do tempo, menor de idade
Põe a bombeta e vai pro corre bater de frente
Não muito diferente, minha gente mata e morre, infelizmente!
Pro sistema, a insônia do boyzinho, cheio de revolta
É só olhar em voltar vai ver que é assim!
No olhar, na cara de mal dos neguinho
Pesadelo do sistema é real, irmãozinho
Lobo mal, canela seca, tudo cortada
De arame, pulando a cerca das marias na quebrada”
Nós vivemos em uma sociedade com grandes influências da religião cristã, que nos faz crer que o livre arbítrio é uma verdade inquestionável e, se o menino escolheu o caminho do crime, optou pelo que é errado então que sofra ele pelos seus atos. Contudo, se quem somos é influência do meio em que vivemos ou se somos seres únicos e herdamos nossas índoles de nascença, não temos, em ambas as situações, controle algum sobre aquilo que nos tornamos, já que tanto nosso DNA, quanto nossos aprendizados ao longo da vida, são resultado de um processo aleatório que foge ao nosso controle.
A forma com que o poder se manifesta muda no decorrer da história, mas, em essência, somos a mesma espécie e o desejo que a elite tinha de perpetuar o poder e subjugar seus liderados na época dos imperadores romanos ou nos reinados Vikings manteve-se nos tempos de Maquiavel (leitura obrigatória) e, de forma mais sofisticada, mantêm-se até hoje. Tudo é pensado para que o poder seja perpetuado, desde o conceito de propriedade privada até a distribuição dos recursos públicos tão desigual na gestão do município do Rio de Janeiro.
Os últimos três parágrafos podem parecer prolixos, mas foram imprescindíveis para embasar minha decisão no caso. Queria que o leitor entendesse, e talvez apenas este texto seja insuficiente para tal compreensão, que o somatório de forças invisíveis exercidas pelo estado sobre um indivíduo condiciona seus processos decisórios ao longo da vida e que essas forças não surgem ao acaso, mas são reflexo de um sistema de perpetuação de poder. Ao leigo, os direitos humanos são alguma conversa fiada para defender contraventores, mas os direitos mínimos para uma condição humana digna foram conquistados com muito sangue e suor pelo povo, para garantir que o estado não exerça seu poder de forma tão autoritária, impondo sanções cruéis a indivíduos dos quais é coparticipante em suas formações.
À mulher que foi assaltada, resta apenas meu mais sincero pedido de desculpas. Culpo-me por saber que eu provavelmente não teria tido a mesma serenidade ao não intervir caso houvesse eu sido a vítima, dada minha limitação humana. Como redenção, escrevo este texto, para que, ainda que ele não venha nunca a ser lido, ecoe pela eternidade como um pedido de perdão à posterioridade, pelo país que eu não consegui transformar.